
Nossa Opinião
Brasil, telenovela e o racismo cotidiano
*Ana Paula Gonçalves
Em 2025, a TV Globo completa 60 anos e, como parte de suas comemorações, foi anunciada uma nova adaptação da telenovela Vale Tudo, de 1988. A obra é considerada um dos maiores sucessos da emissora, exibida originalmente em um período crucial para história contemporânea brasileira: a transição da ditadura militar para a democracia, em um Brasil endividado, com inflação e grande parte da população desempregada. Foi uma época de muita esperança e, ao mesmo tempo, de apreensão sobre o futuro da nação.
Com uma temática forte, Vale Tudo escancara a corrupção empresarial e política, debate ética e o que o brasileiro é capaz de fazer – ou não – para prosperar. Um grande embate entre o bem (representado pela incorruptível Raquel) e o mal (aqui dentre muitos corruptos da obra, o cerne era o embate entre Raquel e Maria de Fátima, sua filha). Como estamos falando de uma novela do final da década de 1980, se você vive o Brasil e pensa a questão do racismo, já sabe que naquela época não haveria a menor possibilidade da protagonista da novela das oito, menina dos olhos da emissora, ser uma mulher negra.
Até a publicação deste texto a emissora ainda não havia se pronunciado oficialmente, mas diversos veículos de mídia estão antecipando notícias sobre a nova adaptação é uma das mais comentadas, criticadas e elogiadas escolhas divulgadas foi a seleção da atriz Taís Araújo como uma das protagonistas da trama, a personagem Raquel. Ao ver desta autora, que estuda Brasil, racismo e fez uma grande pesquisa e análise de Vale Tudo em 2024/2025 é impensável uma Raquel branca, quiçá semelhante à atriz da primeira versão. Que me desculpem os saudosistas de um Brasil representativamente branco, a Raquel é negra e as críticas comprovam que ainda não estamos prontos para este debate.
Vamos lá. Raquel era uma mulher humilde, do povo, em um país com mais de 50% da população negra, qual a probabilidade da mesma ser branca? Na novela de 1988? 100%. Simplesmente não tínhamos protagonistas negros, estamos falando de uma televisão hegemonicamente branca e – caso o leitor tenha curiosidade sobre o tema – temos uma literatura que discute o assunto. Aqui destaco o excelente livro A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira (Araújo, 2019). Voltamos para 2024: o negro segue sendo – infelizmente – pauta de um país racista, que segue sem querer assumir sua origem étnica. Porém, apesar de caminharmos a passos de formiga e sem vontade (sim, a autora estuda telenovela e ama Lulu Santos), estamos caminhando e não apenas a telenovela, mas a própria TV Globo não conseguirá recuar diante de nossa mudança de comportamento e empoderamento.
O último censo foi o primeiro em que a maioria da população se declarou como parda, aumentando e deixando pela primeira vez a população brasileira como não branca em maior proporção. Este dado importa no que tange a autodeclaração. Se antes a maioria negava sua cor e origem, o movimento contrário a cada dia torna-se mais forte. E isto não fica apenas nas pesquisas, o negro começa a perceber seu processo de apagamento social, que é um sistema complexo no racismo estrutural brasileiro. Quando não somos vistos na televisão, na publicidade, na política, no judiciário, e em lugar de destaque, seguimos achando que não temos o direito de pertencer a estes lugares e isto muito interessa à branquitude que segue clamando seu lugar de poder e destaque em um país escravista desde sua origem.
Em 2018, a novela Segundo Sol, também da TV Globo, foi acionada pelo Ministério Público do Trabalho, pela UNEGRO (União de Negros pela Igualdade) e precisou passar por uma reformulação do elenco com a novela já no ar. A trama se passava na Bahia, o estado mais negro do país, e todos os protagonistas da trama eram brancos. A representatividade era ínfima e isto já não era possível em 2018. O povo baiano viu sua capital representando a história, mas não se viu nela e não ficou calado. Foram muitas críticas, o que criou um grande problema para os produtores.
Como já dito, muito do que está sendo divulgado sobre Vale Tudo ainda não foi confirmado, porém, a divulgação do nome de Taís Araújo trouxe uma quantidade significativa de comentários achando um absurdo uma Raquel não branca e em comentários no site do jornal Folha de S. Paulo, várias pessoas dizendo que farão boicote à trama caso não seja uma atriz parecida com Regina Duarte. Não temos como afirmar se Vale Tudo fará o mesmo sucesso que fez em sua primeira versão, nem como a autora Manuela Dias vai conduzir a trama. Mas, já podemos dizer que teremos muito a debater, a começar pela escalação de um elenco condizente com os mais de trinta anos passados da primeira versão.
*Ana Paula Gonçalves é jornalista, doutora em Comunicação pela PUC- Rio e em mestre em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense. Estuda questões raciais e identidade brasileira, sua tese de doutorado foi uma análise da telenovela Vale Tudo no contexto do Brasil da época.
Racismo Estrutural na Identificação Digital em Investigações Policiais
Quando a cor da pele é a manutenção do encarceramento
“… 60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”
E assim começa uma canção do rap nacional do grupo Racionais MCs que denuncia o racismo e à violência policial que acontece diariamente nas cidades brasileiras. Nas capitais, no extremo e no interior das cidades, o alvo não muda são jovens, negros e periféricos.
À juventude negra não é apenas alvo da mira do tiro, quando o tiro não acontece, o encarceramento vem de muitas maneiras usando a justificativa de que “estava no lugar e na hora errada”, mas a grande maioria que ocupa esse espaço é da população negra, que historicamente e de maneira estrutural estava apoiada pela Lei da Vadiagem desde 1941, quando à Lei 3.688 foi criada e ainda persiste na atuação de abordagens policiais. O fato é recorrente, à criminalização de ações culturais como à roda de capoeira, roda de samba e funk sempre sofreram perseguições pautadas no racismo.
Práticas de violação dos direitos, foram sendo construídas também pelo retrato falado que criminaliza pessoas de acordo com as características físicas, sendo comum à cor da pele estar presente nessa identificação.
De acordo com os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, que apresenta que até o ano passado 444.033 pessoas negras estavam encarceradas no País, o que representa 68,2% do total de presos, nesse grupo estão pessoas do sistema prisional e pessoas sob custódia.
Com o avanço significativo das tecnologias, o uso da Inteligência artificial no reconhecimento facial, têm sido aprovado por uns e causado preocupação aos especialistas devido ao enviesamento com influências racistas. Mesmo com a legislação que garante alguns direitos em termos legais, a sociedade ainda precisa de conhecimento para buscar a garantia de seus direitos.
Isabel Sousa é jornalista.