
Seu Jorge, BR
"Nunca, jamais, nos curvaremos ao racismo e à intolerância, seja ela qual for. Não cederemos um milímetro ao ódio."
Nelson Mandela, RSA
"Se há uma lição que podemos aprender com a luta contra o racismo, tanto em nosso país quanto no seu, é que o racismo precisa ser conscientemente combatido, e não discretamente tolerado."
Juliana Borges, BR
"A guerra às drogas entra em cena como o discurso de legitimação da ação genocida do Estado. Um discurso que, ao longo da história da sociedade brasileira, se materializou de diferentes formas e perspectivas em corpos negros,"
O que dizem ...


Clóvis Moura, um estudioso da questão racial
Genira Chagas*
Apoiando-se em teorias marxistas, o sociólogo e pensador Clóvis Steiger de Assis Moura (1925 – 2003), nos deixou uma vasta obra para a compreensão do pensamento social brasileiro. Moura desenvolveu a ideia de lutas de classes no país, expondo as contradições do sistema escravista. Desta forma, enfrentou o mito sobre a passividade do negro, predominante em autores clássicos, destacando a formação dos quilombos e a resistência à escravidão.
Além disso, seu legado intelectual confirma o fenômeno do racismo estrutural, ao mostrar a situação do negro após a abolição, cujas formas de trabalho eram informais e precarizadas.
O pensador publicou vinte e seis livros, além de uma série de artigos em periódicos. Como intelectual e figura pública, destacou-se no campo das Humanidades e na militância comunista. Entre suas obras fundamentais estão Rebeliões da Senzala; Quilombos, Insurreições, Guerrilhas; O Negro, de bom escravo a mau cidadão.
Passados vinte e um anos de sua morte, a obra de Clóvis Moura continua como referência para os estudiosos da questão racial. Como forma de reafirmar a importância desse autor, realizamos esta entrevista com o professor, pesquisador e ativista do movimento negro Márcio Farias, autor do livro Clóvis Moura e o Brasil, lançado pela Dandara Editora.
Genira – Quais elementos o senhor destacaria na produção intelectual de Clóvis Moura que a torna fundamental para a compreensão do pensamento social brasileiro?
Farias – Creio que uma das principais contribuições de Moura foi a de deslocar as origens dos conflitos fundamentais da sociedade brasileira para o período colonial, indicando que a luta permanente de escravizados contra o domínio colonial escravista é a origem da nossa luta de classes. Com isso, ampliou nossa análise sobre a história social brasileira a partir da história do trabalho.
Genira – Poderia explicar o pensamento de Moura sobre racismo estrutural e sua relação com a violência nas relações sociais?
Farias – Ao indicar que a história da colônia não é a da justaposição de culturas, do sincretismo puro e simples, alertou para o dinamismo da nossa sociedade a partir das lutas sociais. Essas lutas sociais históricas têm a violência como mediação entre oprimido e opressor. A violência da colonização escravista força uma resposta violenta de libertação. O expediente da violência ultrapassa a política e atinge outros campos da sociedade: a economia, uma vez que, na colônia, o escravo que lutava e fugia desorganizava a produção. Essa violência permaneceu no império, com o complexo arcabouço jurídico e legislativo para operar a legitimidade da escravidão e, ao mesmo, punir o escravizado que feria o código penal; e ao longo da república, quando o negro, em sua maioria marginalizado, vivia diante de um expediente permanente do Estado em torno de uma política de repressão das massas pauperizadas. Em suma, uma das características que formam o Brasil não é um trato formal cordial, nem a cultura aberta da democracia racial, mas a violência permanente que atinge, principalmente, a população negra, um agente histórico e político incômodo para as elites.
Genira – Clóvis Moura cita em suas teses que o quilombo foi uma sociedade alternativa ao escravismo. Poderia explicar essa afirmação?
Farias – Foi alternativo, segundo Moura, na medida em que pressupõe uma reorganização produtiva, uma nova e mais libertária condição de trabalho, refazendo a hierarquia da sociedade. O Quilombo, para Clóvis Moura, foi uma república encravada em uma sociedade escravista. Essa tese hoje não tem a mesma validade, pois tem se observado o quanto os quilombos, na verdade, refletem estruturas sociais existentes em algumas sociedades africanas.
Genira – De que forma Moura trata a questão do negro após a abolição?
Farias – A marginalização do negro no pós-abolição não pode ser encarada apenas, para Moura, como uma substituição da força de trabalho pré-existente no Brasil por uma mais qualificada. Há uma ideologia de dominação em que o pressuposto era de que o Brasil precisava ser branco e capitalista. A substituição, portanto, também foi uma forma de excluir esse agente incômodo, que nunca serviu de maneira ordeira e progressista aos mandos dos donos do poder.
Genira – É possível enfrentar a cultura racista sem a obra de Moura?
Farias – Moura é, talvez, o mais importante intelectual brasileiro para a compreensão do tema, pois conectou uma análise ampla e abrangente sobre história, cultura, economia, política, epistemologia e teoria da história. Autor incontornável. Só com ele não dá, mas sem ele é impossível entender o Brasil.
*Genira Chagas é jornalista e doutora em Ciência Política pela PUC-SP.